domingo, 19 de outubro de 2008

Sobre águias, galinhas e diversidade funcional

Já me perguntaram várias vezes, tanto em conversas informais como em palestras, sobre pessoas que parecem usar sua diferença funcional para obter favores, benesses e privilégios. Na última vez que fui abordado, percebi um certo constrangimento no meu interlocutor. Ele estava preocupado se a pergunta iria me ofender (julgava haver algum “corporativismo” na diversidade funcional). Depois de conversarmos sobre tão polêmico tópico meu interlocutor relaxou.

É sempre importante repetir que somos pessoas, humanos, gente da melhor e da pior espécie, exatamente como ocorre em todos os segmentos sociais e humanos. Uma diferença funcional não melhora nem piora o caráter e os valores de ninguém. E para se pensar em diversidade humana há que se considerar não apenas facetas isoladas da vida, ou de uma pessoa em separado. Precisamos olhar para TODOS. É assim que tenho buscado respostas. Quando não encontro respostas, encontro pistas que alimentam minhas reflexões.

De fato, há uma histórica expectativa de acolhimento e proteção atrelada à diversidade funcional. Felizmente, muitos de nós já deixamos para trás a idéia ridícula e mesquinha de precisamos ser tutelados, ajudados, acolhidos ou paternalizados por causa de uma diferença funcional. Na vida prática, as diferenças são elementos justificadores do paternalismo, daí a expectativa de que o governo ou alguma outra instituição tem que “doar” a cadeira de rodas, o equipamento ou o serviço, o bilhete do metrô ou do cinema tem que ser gratuito, ou, quando algo tiver que ser pago, que o valor seja menor quando o comprador possui uma diferença funcional. O pagamento parece ser compatível com o nosso valor presumido: Pagamos menos porque para a sociedade a diferença funcional vale menos.

Quando esta expectativa paternalista alcança o mercado de trabalho, encontramos, sim (felizmente há muuuitas exceções), pessoas com diferença funcional que esperam ser menos exigidas no trabalho. Ou seja, queremos trabalhar sim, mas, “pega leve comigo, sou um cadeirante...”.

Como podemos ver, há uma cultura paternalista profundamente arraigada na diversidade funcional. Não são apenas “os de fora” que precisam mudar a mentalidade, mas, nós mesmos temos muito a aprender e mudar. Enxergo tudo isto com muita clareza exatamente porque tento enxergar além dos fatos isolados. Não considero (a priori...) que seja sempre pura leviandade, afinal há uma longa história alimentando o senso comum, que aceita e até estimula, de parte a parte, as atitudes paternalistas.

Uma boa maneira de se compreender o paternalismo é a metáfora da águia e da galinha. Quem explora muito bem esta metáfora é Leonardo Boff, teólogo brasileiro que sabe o que diz. Boff é um sábio e sensível pensador, alguém que compreende com singular brilhantismo a condição humana. Sua metáfora apresenta uma águia criada com galinhas... O longo convívio com as galinhas, sem nunca sequer ter visto uma águia em imponente vôo, fez daquela águia uma ave que vivia, comia, ciscava e se comportava como uma galinha. Ela nunca soube que era uma águia, por isso vivia tão bem adaptada entre galinhas. Num dado momento, esta águia sai do chão e voa, tornando-se, de fato, uma águia (Sugiro a leitura de A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana, Boff, L. Editora Vozes).

Quando li o livro, imediatamente apliquei a metáfora às pessoas que vivem passivamente sob a ditadura de um determinado modelo antes imposto, mas devidamente assimilado, exatamente como a águia que se pensava galinha e não se sabia águia. Quando olhamos para os últimos 20 ou 30 séculos de história, encontramos a diversidade funcional sendo tratada e retratada como uma condição inferior. Ao longo do tempo, o senso comum foi impregnado de crenças, idéias e atitudes que ainda hoje influenciam fortemente a imagem social das pessoas com diversidade funcional.

Na metáfora tão bem trabalhada por Boff, a águia precisou ser reconhecida como águia por um naturalista. Depois ela foi erguida pelo braço do mesmo naturalista. Mas, somente quando voou com as próprias asas ela se sentiu e se reconheceu águia.

A diversidade funcional ainda não voa como águia, mesmo depois de algumas décadas de trabalho e conscientização. Há muitos, muitos bons exemplos e estímulos vindos de todas as partes. Mas, há ainda muitas águias entre nós que ciscam e comem e vivem como galinhas.

Voltando ao diálogo com meu interlocutor, uma diferença funcional pode, sim, ser usada para justificar, de um lado, o comportamento e as atitudes paternalistas, e, do outro, a aceitação e/ou a obtenção de favores, benesses e privilégios em razão da diferença funcional. Esta mão-dupla do paternalismo acomoda de parte a parte a diversidade funcional. O antídoto para esse veneno é pensar as diferenças sem qualquer juízo de valor: diferença funcional não é uma condição inferior. É apenas uma condição diferente. Cabe, então, a cada águia e cada galinha jogar na lixeira os velhos modelos – impostos ou assimilados – que distorcem a natureza seja de águia, seja de galinha.

A história mostra para quem quiser ver: As pessoas com diversidade funcional são como águias vivendo em galinheiros sociais. O teste é o vôo. Mesmo as águias que ciscam como galinhas podem voar. E podem voar para longe do paternalismo, da autocomiseração e da acomodação.


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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; deficiência sensorial; deficiência mental/ntelectual; cadeirante; cego; surdo.

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